segunda-feira, 15 de novembro de 2010

A leitura em Clarice Lispector e Júlio Cortázar

     A tecnologia e a informação são as marcas do mundo atual e, por isso, ser um bom leitor é fundamental.
Lemos em busca de novos conhecimentos ou de uma postura filosófica diferente da nossa. Mas, a melhor leitura talvez seja aquela que nos faz viajar em busca do prazer, explorando mundos desconhecidos, interagindo e deixando-se envolver pela trama do texto, nas Trilhas das Letras.
    Júlio Cortázar com Continuidade dos Parques e Clarice Lispector com Felicidade Clandestina, souberam materializar,com maestria, esse tipo de leitura.
     Do conto de Lispector, além da versão na voz de Aracy Balabanian, há no Porta Curtas, uma adaptação livre, de 1998, com duração de 15 minutos.


Continuidade dos Parques
Júlio Cortázar

    Começara a ler o romance dias antes. Abandonou-o por negócios urgentes, voltou à leitura quando regressava de trem à fazenda; deixava-se interessar lentamente pela trama, pelo desenho dos personagens. Nessa tarde, depois de escrever uma carta a seu procurador e discutir com o capataz uma questão de parceria, voltou ao livro na tranqüilidade do escritório que dava para o parque de carvalhos. Recostado em sua poltrona favorita, de costas para a porta que o teria incomodado como uma irritante possibilidade de intromissões, deixou que sua mão esquerda acariciasse , de quando em quando, o veludo verde e se pôs a ler os últimos capítulos. Sua memória retinha sem esforço os nomes e as imagens dos protagonistas; a fantasia novelesca absorveu-o quase em seguida. Gozava do prazer meio perverso de se afastar, linha a linha, daquilo que o rodeava, a sentir ao mesmo tempo que sua cabeça descansava comodamente no veludo do alto respaldo, que os cigarros continuavam ao alcance da mão, que além dos janelões dançava o ar do entardecer sob os carvalhos. Palavra por palavra, absorvido pela trágica desunião dos heróis, deixando-se levar pelas imagens que se formavam e adquiriam cor e movimento, foi testemunha do último encontro na cabana do mato. Primeiro entrava a mulher, receosa; agora chegava o amante, a cara ferida pelo chicotaço de um galho. Ela estancava admiravelmente o sangue com seus beijos, mas ele recusava as carícias, não viera para repetir as cerimônias de uma paixão secreta, protegida por um mundo de folhas secas e caminhos furtivos, o punhal ficava morno junto a seu peito, e debaixo batia a liberdade escondida. Um diálogo envolvente corria pelas páginas como um riacho de serpentes, e sentia-se que tudo estava decidido desde o começo. Mesmo essas carícias que envolviam o corpo do amante, como que desejando retê-lo e dissuadi-lo, desenhavam desagradavelmente a figura de outro corpo que era necessário destruir. Nada fora esquecido: impedimentos, azares, possíveis erros. A partir dessa hora, cada instante tinha seu emprego minuciosamente atribuído. O reexame cruel mal se interrompia para que a mão de um acariciasse a face do outro. Começava a anoitecer.
   Já sem olhar, ligados firmemente á tarefa que os aguardava, separaram-se na porta da cabana. Ela devia continuar pelo caminho que ia ao Norte. Do caminho oposto, ele se voltou um instante para vê-la correr com o cabelo solto. Correu por sua vez, esquivando-se de árvores e cercas, até distinguir na rósea bruma do crepúsculo a alameda que o levaria à casa. Os cachorros não deviam latir e não latiram. O capataz não estaria àquela hora, e não estava. Pelo sangue galopando em seus ouvidos chegavam-lhe as palavras da mulher: primeiro uma sala azul, depois uma varanda, uma escadaria atapetada. No alto, duas portas. Ninguém no primeiro quarto, ninguém no segundo. A porta do salão, e então o punhal na mão, a luz dos janelões, o alto respaldo de uma poltrona de veludo verde, a cabeça do homem na poltrona lendo um romance.


CORTAZAR, Julio. Final do jogo.
Trad. Remy Gorja Filho.
Rio de Janeiro, Ed. Expressão e Cultura, 1971.


Um comentário:

  1. A vida de Clarice foi muito conturbada mas não abandonou as letras, escrevendo cada vez mais belamente sobre a introspecção das pessoas.Este texto que você traz no seu blog traduz nitidamente a introspectividade do ser humano.
    parabéns pelo seu blog. Genoveva

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